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sábado, 21 de agosto de 2010

Nós somos os números...

Não me importo de dever ao banqueiro endinheirado.
Ver a miséria pilhando o poder não faz com que me sinta lesado.
Mas muito me dói ver o burro de carga
Carregando em seu lombo todo o peso do progresso
Enquanto é açoitado, castigado, tendo por paga apenas restos.
O oprimido dá seu sangue, sua vida, seu suor
Movido pela triste ilusão de tornar-se alguém melhor.
Suficientemente fustigado para não se erguer em protesto.
Eles têm a mídia e nos alienam,
Detém os meios e nos acorrentam.
Fazem leis que nos condenam,
Mas temos os números e seguimos amenos.
Gosto muito de ver saquearem grandes redes
Porém me assusta o jornal noticiando a morte de outro trabalhador.
Eles compram a segurança e se escondem do perigo.
Lançam notícias tendenciosas, nos tornando inimigos.
Estou do mesmo lado que você, tomar minha metade não matará sua fome.
Precisamos nos fortalecer. Te eliminar não fará de mim mais homem.
Também luto e sinto sua dor, esmagados pelo mesmo opressor.
Levar meu pouco não resolve seus problemas e não me alegra condená-lo a uma pena.
Eles têm a mídia e nos alienam,
Detém os meios e nos acorrentam.
Fazem leis que nos condenam,
Mas nós, que somos os números, seguimos amenos.
Tudo o que fazemos é nos digladiar
Em nossos conflitos de autopunição.
Levar meu nada não te suprirá o pouco.
Te prender anulará meu próprio irmão.
Eu não ligo de quebrar uma multinacional
Ou de amarrar num tronco o patrão
Mas muito me incomoda ver o policial atirando no grevista
Em defesa dos interesses de um burguês bonachão.
Eles bebem nosso sangue e nós mesmos o servimos.
Eles vendem belos sonhos e nós nos iludimos.
Eles querem nos ver tremer e nós mesmos nos sacudimos.
Eles precisam nos conter e nós mesmos nos destruímos.
Eu não ligo de dever ao banqueiro endinheirado.
Ver a miséria pilhar o poder não faz com que me sinta lesado.
Eu não ligo de quebrar a multinacional do patrão.
Mas muito me incomoda o policial defendendo um burguês bonachão.
Estamos todos presos por grilhões niquelados.
Enxergamos apenas os cifrões almejados.
Me roube e aumentará a fome do irmão.
Te açoitar manchará de sangue minhas próprias mãos.
Nós somos os números.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Manchete...

Washington José da Silva sempre gostou de som. Favorecido pela malemolência herdada da raça rebolava embalado por pagodes e axés e, acreditando contribuir para a alegria do povo, empenhou-se em levar aos ouvidos alheios, impreterivelmente em volume máximo, suas predileções musicais.
Quando garoto acordava o cortiço todo ao ligar os alto-falantes na porta de casa, aos domingos, oito da manhã. Pouco mais velho começou a trabalhar e, com seu primeiro ordenado, em vez de matricular-se na computação, como gostariam seus pais, comprou um moderníssimo reprodutor portátil de MP3. Não queria processar dados. Rapaz de visão, sua vontade mesmo era entreter pessoas, de graça e mesmo que a contragosto.
Depois da primeira bugiganga sonora os dias nunca mais foram iguais, as caminhadas ficaram mais alegres, a vida mais colorida e até os trajetos percorridos de ônibus, naquele aperto e mau-cheiro, tornaram-se mais animados. Não tinha um, dentro do coletivo, que não ouvisse o som emitido por seu MP785.
Dezoito anos e adquiriu seu primeiro carro, oitocentos reais por um fusca setenta e dois, azul-calcinha. No sacrifício conseguiu juntar mais seis mil reais para sonorizar o possante e, quase realizado, passou a desfilar pelas ruas espalhando cultura. Ficou famoso por seus atos. Onde quer que fosse virava assunto: - Lá vai o Zé!
Infelizmente, na última madrugada, estacionado em um posto de gasolina onde havia uma reunião de motociclistas metaleiros, ao ligar um cd com o último hit do funk carioca, Washington foi espancado até sua morte.
Morreu aos vinte e dois anos, sem concretizar seu sonho de ter um trio elétrico.